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Filosofos, e agora?

Você tem um grupo de amigos? Provavelmente sim. Vocês estabeleceram leis para ordenar como este grupo funciona? Provavelmente não. Isso pode soar esdrúxulo, mas vocês tem regras. Regras informais, que não precisaram ser ditas, tipo na casa de fulano não pode beber cerveja sobre o tapete, ninguém dá em cima do parceiro de ninguém, na presença de crianças não se fala palavrões, e daí por diante. Ninguém estabeleceu um rol de regras de convivência, elas foram se conformando com o passar dos meses e anos de amizade, com os casamentos, com os novos amigos que passaram a fazer parte do grupo. Por vezes um ou outro item pode ser formalizado como uma determinada data para uma comemoração especial dentro do grupo, um dia da semana específico para a prática de esportes (geralmente futebol), o dia em que todos levam as crianças a algum lugar. Isso existe ou é imaginação minha?
Se você tem mais de um grupo de amigos, as regras são diferentes dentro destes grupos, e da mesma forma ninguém escreveu as regras do grupo A e do grupo B. Geralmente, quem entra depois acaba se adaptando ou a amizade esmorece. Cede aqui, cede ali, e as coisas vão se acomodando, de modo que o grupo persiste e a convivência tende a ser pacífica. Claro que desavenças podem surgir, mas é contumaz que a turma do deixa disso interfira ou os ânimos arrefecem e tudo volta a normalidade. Nem todo mundo concorda com tudo, por vezes um torce para o time rival do outro, as preferências de local para encontros ou viagens divergem. Conversa vai, conversa vem, e uma conclusão acontece, o tal do "denominador comum".
Agora imagina se em determinado momento um dos integrantes do grupo começa a reiteradamente quebrar estas regras, e mais se impõe como líder de uma mudança no "funcionamento" normal do grupo. Continue imaginando que este grupo não se desfez, e o capiroto continua testando os limites e quebrando as regras mais e mais. O grupo vira um verdadeiro inferno. Continua imaginando comigo que parte do grupo aceita as reiteradas quebras de regra e apoiam ou tentam ignorar o sujeito. Outro grupo, este não, não quer que aquelas regras não escritas permaneçam. Então, ao invés de um feliz encontro de almas semelhantes, agora temos batalhas, brigas e discussões. Já dizia um amigo, tem gente que gosta de viver no inferno.
Por que estou contando essa estória? Porque a política (aquela com P maiúsculo) geralmente funciona a partir de leis formais e de regras informais. Na política (aquela com P maiúsculo) certas regras informais eram respeitadas. Claro que na política, o número de pessoas é muito maior que um grupo de amigos, visões diferentes de como as coisas devem funcionar convivem lado a lado. Mas esta convivência se dá mais por causa das regras informais do que propriamente das leis. 
Claro que às vezes rusgas surgem e o tempo fecha, mas a turma do deixa disso ou o arrefecimento acabam reordenando as coisas e o política (aquela com P maiúsculo) acontece. Algumas regras que não estão escritas no papel fazem essa mediação, por exemplo perdeu mandato, perdeu. Vale reclamar? Vale. Vale dizer que votaram na pessoa errada? Vale. Vale bater pezinho e fugir para Paris? Vale. Isso é uma regra não escrita. Não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma lei sobre comportamento do político que perdeu um mandato. Não existe uma lei que obrigue o candidato derrotado a telefonar para o vitorioso. Lógico que existem leis de decoro e ética, mas muitas regras na política (aquela com P maiúsculo) não estão escritas.[1]
Se alguém quebra essas regras informais? Não há leis para punir, não há sanções penais ou cíveis, fora o decoro esperado de um funcionário público. Geralmente, o inconveniente é colocado na geladeira, é chamado atenção pelos pares, a turma do deixa disso chega junto. Mas e se o inconveniente não para? Se ele continua agindo ao arrepio das convenções informais? Se ele desafia aquilo que faz a democracia funcionar? Sim, a democracia funciona por causa das leis formais e das informais dentro da política (aquela com P maiúsculo). São as regras de convivência entre políticos que permitem que haja diálogo entre visões diferentes de mundo, pois se não houver um mínimo de ordem, enquanto um fala o outro ouve e assim se revezam, nada pode caminhar e tudo vira uma balburdia sem sentido. Cada um gritando suas palavras de ordem e ninguém chegando a lugar algum.
Diferente de um grupo de amigos que pode se dissolver, um país, um estado ou município não pode acabar (quer dizer, poder pode, mas não do jeito que um grupo de amigos se desfaz). É o verdadeiro pombo no tabuleiro de xadrez (como esta metáfora está desgastada, todo mundo acha que o pombo é o outro e ninguém para e pensa: somos todos pombos?)
Bom, assim vem se desenvolvendo a política (sem p maiúsculo) nos últimos anos. Tornou-se norma para determinados políticos agirem como aquele amigo inconveniente. A vitória dos políticos pró-Brexit, de Donald Trump e de Jair Bolsonaro mostraram que não só existe quem queira quebrar as regras informais, mas que isso pode gerar votos. Dizer que está tudo errado e não propor nada no lugar, mentir descaradamente para depois desmentir e dizer que não mentiu, colocar todos na beira do abismo passou a ser interessante, pois uma leva de políticos começou a agir da mesma forma. E agora? Fica difícil uma democracia funcionar sem regras, e quando as pessoas começam a desconfiar do funcionamento da democracia, abre-se espaço para o totalitarismo, para a falência do sistema de pesos e contrapesos, para a instauração de regimes de exceção.
Sem regras, sem política (aquela com P maiúsculo), sem democracia. Há quem ache que as coisas funcionam melhor assim, eu não sou um destes. Acredito que a democracia é o melhor dos sistemas até agora apresentados pelos humanos. Mas para mim e para aqueles que concordam que a democracia é o melhor sistema, parece que o Rubicão foi atravessado. O que fazer?
Aí eu peço socorro a filosofia. Apelo para que os filósofos tragam alguma resposta para como devemos entender tudo isso e a partir daí refundar e aperfeiçoar o sistema democrático. Foram os filósofos que contribuíram com ideias que fundaram os sistemas políticos. Foram eles, com seus cérebros admiráveis que refletiram sobre como os humanos podem conviver e definiram liberdade, política, democracia e até mesmo o que é ser humano. Não estou pedindo que os filósofos tirem uma solução da cartola como um mágico, apenas que nos apontem direções. Onde estão os nós e os fios que se embolaram de forma tão perigosa? Onde está o começo do fio, ou pelo menos onde procurá-lo? Certamente há filósofos refletindo sobre isso, urge que eles se apresentem e que nós tenhamos a sabedoria de ouvi-los.

ATUALIZAÇÃO 19/11/2023
Após ter escrito e programado este texto, terminei a leitura de "Os Limites da Democracia" (Editora Todavia, 2013) de Marcos Nobre. Feliz de saber que existem pensadores dispostos a enfrentar alguns do desafios propostos no meu texto. O livro de Marcos Nobre é um constante entrar e sair da caixinha, daqueles que nos fazem refletir sobre as próprias convicções, seja para mudá-las ou reforçá-las. Recomendo!
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[1] Claro que não sou um Candide de Voltaire para achar que todos os problemas políticos são esses.
Alguns livros utilizados como base deste texto
Hanna Arendt - Origens do Totalitarismo
Brittany Kaiser - Manipulados
Yascha Mounk - O povo contra a democracia
Daniel Ziblatt e Steven Levitski - Como as democracias morrem
Jason Stanley - Como funciona o fascismo: a política do nós contra eles
Marcos Nobre - Ponto Final: A guerra de Bolsonaro contra a democracia

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