Prof. Lambeau: "Você tem medo de
fracassar, e é por isso que você sabota qualquer chance que tenha de realmente
ter sucesso."
Will: "Você acha que eu sou um
fracassado porque quero trabalhar em uma construção?"[1]
A
linguagem cria e derruba realidades. Curioso como a escolha de palavras pode
ser aterrorizante. Há alguns anos o jornalista Alexandre Garcia[2] fez um comentário em um
dos noticiários da televisão aberta, todos os anos o vídeo ressurge das trevas
do esquecimento quando chega próximo ao Dia dos Professores.
O
texto do jornalista a princípio, sem análise crítica, parece uma ode, uma
homenagem aos professores e professoras desamparadas, que tem até medo de serem
denominadas como tal, preferindo ser chamadas de educadoras ou pedagogas (SIC).
Mas
qual seria a minha análise crítica do que é proferido pelo jornalista. Ao contrário
de elevar a condição de professor, ela rebaixa! Sim, simulando o enaltecer de
toda uma categoria, ela coloca todos em um só recipiente e rebaixa a meros “presenteados”.
Que não tem uma profissão, mas uma “missão”. Vamos entender?
O
jornalista/comentarista enfatiza que professor recebe um dom e por isso é
importante. Que dom seria esse? O dom de ensinar. O dom de levar o conhecimento
para nossas crianças e jovens para formar os futuros médicos, advogados e engenheiros
entre outros. Mas... (lá vem a maldita conjunção adversativa cheia de reticências)
eu trabalho como professor há quase 40 anos. Conheci professores habilíssimos em
levar com maestria a arte/ciência de ensinar e outros que poderíamos chamar de desastrados
ou hesitantes. E todo o espectro que se encontra entre esses dois extremos.
Qual a diferença? Segundo o Sr. Garcia deve ser a falta ou não de dom.
Penso
que como em qualquer profissão, ninguém nasce sabendo ser médico, advogado ou engenheiro
(como o Sr. Garcia afirma), por que haveriam de nascer sendo professores? Por
que a habilidade médica e causídica é aprendida e praticada durante anos antes
de exercida e a de professor é apenas um dom? Recebeu, recebeu. Não recebeu, lamento.
E o que remuneração tem a ver com isso? Se você é professor, você RECEBEU um
dom, tem mais é que dividir este presente (divino?) com os demais. Cumpra sua
missão, professor, pois você nasceu para isso.
Onde
nasce essa ideia de que ser professor é ter recebido um dom? Penso, e deixo a
cargo de vocês decidirem se é por aí, que nasce do erro em confundir oratória
com capacidade de ensinar, “presença de palco”[3]/carisma com capacidade de
ensinar, erudição com capacidade de ensinar. Ora, se ensinar basta ter carisma,
e não advogo que o carisma não possa ser importante, para que há uma ciência
toda envolvida na compreensão dos fenômenos do ensino-aprendizagem? Para que
tantas aulas de didática? Para que planejamento de ensino? Para que políticas públicas de educação?
Não
descarto aqui, a ciência ainda não está totalmente clara sobre isso, que a
pessoa não possa ter nascido com algumas características predisponentes, contudo
é necessário que entendamos por vez, que um professor não nasce formado. Não nasce
com um dom. E, principalmente, que isso não o valoriza ou desvaloriza. Não é ter
um dom que irá trazer a valorização da sociedade ou dos gestores públicos.
Um
professor deve ser valorizado pelo seu papel per se na sociedade. O
papel de cuidar para que sejam diminuídas as desigualdades sociais, que
indivíduos capazes de refletir não se tornem instrumentos de manipuladores, ao
mesmo tempo que sejam capazes de refletir e não se deixem levar eles próprios
pela manipulação.
Ser
professor não é fácil, não é automático, herdado ou recebido. Um professor é
construído e se constrói. Um professor merece ser bem remunerado pois é um ser
humano que trabalha, como qualquer ser humano merece dignidade e tudo que está
associado e esta palavra específica.
Profissões estão na categoria de incomensuráveis e por isso mesmo é muito difícil de comparar. Usando palavras do jornalista, salvar vidas, manter pontes em pé, livrar inocentes da cadeia e ensinar são missões importantes, qual é mais? Ele revela que ensinar é importante para não “deixar definhar o futuro”. O que isso quer dizer? Em que medida isso pode afetar o salário do professor? Parece óbvio, mas por trás desta expressão, “definhar o futuro”, nada existe, pois o futuro sempre vem, independente de querermos ou não, de termos professores ou não. Eu entendo que futuro aqui não está sendo usado literalmente, mas no sentido de um “futuro melhor”, contudo sem saber o que é “melhor” a expressão fica sem sentido. O que pode definhar são os valores, os direitos civis, a democracia, o respeito a dignidade. Então, o papel do professor não se limita a ensinar, educa também (o que o jornalista afirma ser prerrogativa única e exclusiva dos pais). Os pais também ensinam, também as relações sociais ensinam (famílias, amigos, colegas de trabalho, etc). Até a vida ensina, como canta Djavan: "A vida ensina que não se aprende a viver/Senão vivendo"[4]. Como um ser humano pode nascer pronto para tantas responsabilidades?
A responsabilidade de um professor como membro de uma sociedade não é inequívoca, é histórica e política. A atividade guarda relação com seu tempo e com a sociedade que está inserida. Também é política na medida que as atribuições do professor podem contribuir ou não na manutenção do status quo. Não política no sentido partidário da palavra, mas política com P maiúsculo. O professor está inserido, no Brasil, em um sistema de políticas públicas que afetam e serão afetadas pela sociedade e pelo estado. Então a quem interessa que o professor receba pouco? Aí começa a discussão!
Enquanto ficarmos discutindo que a profissão de professor é sagrada, é um dom, é missão, os professores continuarão ganhando pouco e pouco (ou quase nada) está sendo feito.
[1] Diálogo do filme Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997) dirigido por Gus Van Sant com Matt Damon, Ben Affleck, Stellan Skarsgård e Robin Williams
[2] https://youtu.be/yY_PYlJYAS0
[3] Permitam-me aqui as aspas pois também acho que ninguém nasce pronto para os palcos seja qual for a arte.
[4] Vida Real (Dejame Ir) quarta faixa do álbum sem título lançado em 1989 por Djavan (Autores: Nelson Motta/Chico Navarro/Mike Ribas)
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Atualização em 27/07/2023
Um grande amigo, no privado, me chamou atenção para um fato importante que eu não poderia deixar passar. Ele pontuou acertadamente algumas situações das quais dependia a valorização de qualquer profissão. Faço aqui meu reparo.
Realmente a leitura do texto pode deixar a indicação de que a valorização do professor só dependeria de deixarmos de pensar nele como um presenteado. Claro que a valorização, como todo problema complexo, não pode ser reduzido a uma única, simples e inequívoca resposta. A valorização depende de comparações com outras profissões, ao "valor agregado" que esta profissão aparenta aos olhos da sociedade, aos interesses políticos, aos avanços da tecnologia entre outros aspectos.
Fica aqui minha atualização ao texto e principalmente meu agradecimento por ter leitores atentos e com senso crítico que só me ajudam a desenvolver minhas capacidades. Obrigado.
Meu nobre colega, gastaríamos dias para esmiuçar esse texto tão relevante e eivado de conteúdo. Todavia, não quero deixar passar sem comentar uma pequena faceta. Não consigo ver, como pode a expressão "missão", diminuir a nossa profissão. Me parece mais nociva a fala do "antigo compositor alagoano", que parece esvaziar de sentido toda a ponderação e reflexão nos saberes antigos, próprios e alheios, utilizados por nós na prática docente. Ensinar é usar os erros e acertos, de toda a história registrada da humanidade. Não simplesmente "meter a cara" na vida, abrindo caminhos já antes desbravados.
ResponderExcluirMárcio Saraiva (Não consegui logar novamente)
PS. Não sei se o site permite alterar fonte ou cor de fundo, mas meus olhos de professor de meia idade sofreram um pouco na leitura. Fica o feedback.
Um Abraço!
Caro amigo Marcio
ResponderExcluirAgradeço muito pelos elogios ao texto, mas principalmente pela possibilidade de um debate civilizado de ideias. Vou dividir minha resposta em 2 partes.
Em primeiro, também não tenho problemas com a palavra missão, e se isso de alguma forma transpareceu vai da minha parca capacidade com as palavras. Na releitura do texto, para te responder, percebi que a palavra missão aparece em 2 momentos: hora eu a uso com um sentido (sentido do missionário que parte para cumprir um objetivo imaterial, daí a remuneração não ser derivativa) e em outro com sentido objetivo substantivo, como o caso de qualquer profissional ético. Escusas pela minha dificuldade em me expressar.
A segunda é em relação ao trecho da música. Como arte, cabem interpretações distintas, por vezes até opostas. Entendo perfeitamente seu ponto de vista ao interpretar os versos como uma forma de "não escolaridade", do aprender com a vida prática, longe de alguma escolaridade ou erudição. Sua interpretação é cabível. Mas a minha interpretação é um pouco diferente. Em minha humilde opinião o poeta foi muito feliz pois conseguiu colocar em dois versos uma questão profunda na filosofia ocidental entre essência e existência. Nesta canção, que fala do amor (poderíamos dizer essência) onde um personagem é brutalmente arremessado com a negação do amor. Outro personagem tenta desvelar que só quem "vive a vida" entende que amar, ser amado ou não ser amado aprende a essência/existência do amor. Da mesma forma, o conhecimento (que alguns filósofos classificam como algo imaterial) é fatalmente confrontado com as questões da existência (os alunos, a sala de aula). Um professor para concretizar sua missão ou seu trabalho de educar/ensinar deve fazer a mediação entre o conhecimento e a existência. Sem confrontar suas técnicas e métodos será sempre uma espécie de gralha espalhafatosa. Um professor que não se submete a viver a vida (confrontar a realidade, debater consigo mesmo, agir e reagir) não aprende a professorar.
Mais uma vez obrigado! Grande abraço.
Desafios em se debater em uma língua tão rica de significados. Quanto ao Djavan… não se poderia esperar uma simples interpretação do cara que escreveu Açaí, Azul e Sina. Abraço!
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