Pular para o conteúdo principal

Aluno: o ser nas trevas! 😜

                                                             “All in all, it's just another brick in the wall

                                                               All in all, you're just another brick in the wall”[1]

“Vocês que vem das trevas devem se aproximar de mim para receberem a luz, já que aluno significa sem luz”. Essa foi a maneira que eu e alguns colegas fomos recebidos sarcasticamente por um professor. Anos depois, eu já como professor ouvi em uma reunião a mesma definição. Eu já havia procurado a etimologia da palavra e não batia com isso. Após a reunião resolvi debater com a pessoa, com quem eu tinha intimidade para tal, sobre o uso equivocado, ainda mais em uma reunião de professores. Recebi um email (que hoje facilmente seria chamado de textão) justificando porque estava correta a interpretação: Aluno = sem luz. Infelizmente, foi um caso de não admitir o erro, só lamentei, eu gosto muito de oportunidades de aprender, nem todos são assim, mesmo sendo pessoas bem-intencionadas e de boa índole.

A palavra "aluno" tem uma etimologia rica e interessante que, infelizmente, foi distorcida ao longo do tempo. Ela se origina do latim "alumnus" (masculino) e "alumna" (feminino), a palavra carregava originalmente a ideia de "criança de peito" ou "criança que mama", referindo-se ao período inicial da vida em que uma criança recebia os cuidados de uma ama de leite.

Entretanto, a interpretação equivocada de que "aluno" significa "sem luz" tem perpetuado uma visão ultrapassada do papel do estudante na relação com o professor. Essa interpretação, sem fundamento etimológico, sugere que o aluno é uma "tábula rasa" que precisa ser totalmente moldada e iluminada pelo professor, como se este fosse o único detentor do saber. Conceito decadente há décadas.

Essa concepção antiquada do aluno como um ser passivo, vazio de conhecimento prévio e à espera de ser preenchido, é prejudicial em vários aspectos. Em primeiro lugar, ela desconsidera o fato de que os alunos têm experiências e saberes prévios que são fundamentais para o processo de aprendizagem. Cada aluno traz consigo uma bagagem única, fruto de suas vivências e culturas, que pode enriquecer o ambiente educacional.

Além disso, a visão do professor como o único detentor do conhecimento reforça a hierarquia autoritária na sala de aula, dificultando a construção de um ambiente colaborativo de aprendizado, como critica Foucault dizendo que esse tipo de visão apenas reforça as estruturas de poder dentro da sociedade. A troca de saberes e perspectivas entre alunos e professores é essencial para um ensino mais enriquecedor e significativo.

Outro problema da versão incorreta da etimologia é que ela diminui o papel ativo e protagonista do aluno em sua própria educação. Ao ser visto como um recipiente vazio a ser preenchido, o estudante pode se sentir desestimulado, desvalorizado e até desumanizado (podemos apelar para Foucault, Adorno, Piaget e Freire). Isso pode comprometer sua motivação para aprender e se desenvolver intelectualmente.

É importante resgatar a verdadeira origem da palavra "aluno" e compreender que ela remete ao cuidado e nutrição no período inicial da vida, mas sua interpretação atual está intrinsecamente ligada ao ato de aprender e buscar conhecimento. O aluno é um sujeito ativo, capaz de aprender, questionar, criar e se desenvolver em parceria com os professores e demais colegas.

Uma educação verdadeiramente transformadora deve encorajar a autonomia dos alunos, valorizar suas experiências e incentivar o pensamento crítico. Nesse contexto, o papel do professor é o de um facilitador do aprendizado, estimulando a curiosidade, guiando os alunos e criando um ambiente inclusivo e participativo.

Não concordo com a abolição da palavra como vi em alguns lugares, é fundamental desconstruir a visão ultrapassada do aluno como "ser sem luz" e debater a riqueza da verdadeira etimologia da palavra. Somente ao reconhecer o papel ativo do aluno em seu processo educacional é que podemos construir uma educação mais significativa, inclusiva e transformadora para todos.


[1] “No fim das contas, é apenas mais um tijolo no muro/ Ao todo, você é apenas mais um tijolo no muro” (tradução minha). Refrão da música Another Brick in the wall (part II) composta por Roger Waters e interpretada pela banda Pink Floyd. Gravada no álbum The Wall (1979) e transformado em filme (1982). Nesta música especialmente retrata uma educação que equaliza todos os alunos e depois os moe em uma máquina. Dizendo que tanto os alunos quanto professores são apenas peças que se encaixam numa estrutura desumanizante (o muro). O professor humilhado em casa desforra nos alunos suas frustrações.

Comentários

  1. Oi Marco. Se compararmos os paradigmas epistemológicos da educação pedagogia, andragogia e eutagogia (há vasto material na rede). A pedagogia está relacionada com educação de crianças, que não possuem autonomia para definir o que, como estudar e como avaliar/demonstrar as competências adquiridas. Gostei de seu texto pois fiz um link com a andragogia, meu foco de atuação docente. Lá o professor se chama mediador e o "aluno" de aprendente. Seu texto me encaixou aqui! Na pedagogia o professor fica no tablado e os alunos em carreiras, logo abaixo, para preencher seu vazio em conteúdo. O alunado só deve perguntar ao final da brilhante explanação, monólogo, discurso, do professor. Na andragogia a aprendizagem é de adultos, e há uma troca entre aprendentes e mediador. E os conteúdos dessa mediação, desse processo de ensino-aprendizagem, deve fazer sentido para os aprendentes. Por isso, no meu caso, como mediadora, será um processo com base em resolução de problema ou estudo de um caso que faça sentido para eles. No arcabouço das metodologias ativas. Será que abordar o termo aluno, à luz desses 3 paradigmas pode ser interessante?

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pela complementação do texto.

    ResponderExcluir
  3. Adorei o texto! Obrigada por compartilhar tanto conhecimento! Fui teletransportada para minhas aulas de Filosofia da Educação discutindo importantes educadores como Paulo Freire... Não por acaso ele foi citado, né? Rsrsrs

    ResponderExcluir
  4. Que reflexão maravilhosa!!!! Estou gostando muito dos textos aqui escritos! Parabéns, Março Machado!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu que agradeço estar sempre visitando meu blog! Será sempre um prazer para mim.

      Excluir
  5. Texto brilhante, parabéns Marco Machado

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Sugiro conhecer a https://pt.wikipedia.org/wiki/Netiqueta

Postagens mais visitadas deste blog

Filosofia e (é) autoajuda?

Modernidade Líquida, como dizia o sociólogo Zygmund Buman. As coisas são tão fluidas a partir do que ficou convencionado chamar de pós-modernidade, que o individualismo chegou a um ponto bem fora da curva. Aí o sujeito fica sozinho na multidão e não pode parar, precisa ficar se movendo o tempo todo. Muda de emprego, muda de relação, muda a profissão, muda de cidade, e vai mudando. Afinal, pedra que muito se muda não cria limo jamais [1] . Este limo que a pedra vai juntando em um ponto sólido da paisagem húmida de um bosque, por exemplo, se torna parte integrante desta mesma pedra. Se você retirar o limo e devolver a pedra ao mesmo lugar, pode ter certeza que algo no ecossistema terá que ser readaptado. Tempo para pensar? De jeito nenhum, o líquido é fluido, suas moléculas tem que estar em movimento constante e modificam seu formato de acordo com as fronteiras que aparecem a sua frente. Hora do exemplo dramático, um rio flui através de espaços propícios em um determinado solo, até que e

Professor, além de dar aula você trabalha?

Prof. Lambeau: "Você tem medo de fracassar, e é por isso que você sabota qualquer chance que tenha de realmente ter sucesso." Will: "Você acha que eu sou um fracassado porque quero trabalhar em uma construção?" [1]   A linguagem cria e derruba realidades. Curioso como a escolha de palavras pode ser aterrorizante. Há alguns anos o jornalista Alexandre Garcia [2] fez um comentário em um dos noticiários da televisão aberta, todos os anos o vídeo ressurge das trevas do esquecimento quando chega próximo ao Dia dos Professores. O texto do jornalista a princípio, sem análise crítica, parece uma ode, uma homenagem aos professores e professoras desamparadas, que tem até medo de serem denominadas como tal, preferindo ser chamadas de educadoras ou pedagogas (SIC). Mas qual seria a minha análise crítica do que é proferido pelo jornalista. Ao contrário de elevar a condição de professor, ela rebaixa! Sim, simulando o enaltecer de toda uma categoria, ela coloca todos em

“Momentos de vida real” ou Reflexões Cotidianas ou Filosofia não é só “sexo dos anjos"

A – O Motorista de taxi Fazia um calor argelino e as fagulhas do sol refletidas nas janelas e capôs dos carros feriam os olhos de uma maneira que me fez lembrar Mearsault. O trajeto até era curto, já tinha feito algumas vezes a pé, mas naquele dia eu chamei um taxi. Na rápida conversa sobre as dificuldades do taxista frente a uberização do transporte urbano, veio à tona o assunto de que o Brasil precisava de alguém que fosse “contra tudo isso aí”. Um argumento era que os funcionários públicos eram marajás e recebiam fartos salários as custas dos pobres contribuintes. “Outro dia peguei (SIC) um professor do IFF [1] que disse que ganhava 10 mil reais” – disse ele. Tentei ser o mais socrático que pude na minha fala e perguntei: - É o professor do IFF que ganha muito ou as professoras do município e os taxistas é que ganham pouco? Segundos de silêncio e reflexão. “É talvez o senhor esteja certo, mas tem muita coisa errada por aí”. Fim da conversa, será que naquele momento começava