“New car, caviar, four-star daydream. Think I'll buy me a football team”[1]
Não, este texto não é sobre armas de fogo. Gatilho é daquelas palavras que podem ter múltiplos significados. Sim, gatilho está associado a disparo, e é claro que pode ser o disparo de uma arma de fogo (revolver, pistola, fuzil etc). Mas hoje quero falar dos chamados gatilhos emocionais.
Vamos
lá, a neurociência explica que gatilhos emocionais são estímulos externos que
disparam a liberação de diversos neurotransmissores induzindo uma resposta
fisiológica intensa. Os gatilhos podem ativar áreas específicas do cérebro
estimulando emoções como medo, ansiedade, prazer entre outras. Por exemplo, um
cheiro pode despertar memórias “adormecidas” de um momento bacana que você
passou com alguém em uma viagem, mas também pode fazer recordar de um velório
de uma pessoa muito amada.
Para mim a palavra gatilho, no sentido emocional, apareceu tardiamente, e veio através de algumas palestras sobre marketing que assisti. Os profissionais do marketing abusam de gatilhos para convencer as pessoas de comprar algo ou serviço. Através de campanhas publicitárias usam de associação de imagens, sons, cheiros e outros sentidos para estimular gatilhos direcionando nossa atenção para o produto ou serviço seu cliente.
Bom, mas minha conversa sobre gatilhos também não entrará na seara do marketing propriamente dito. Os gatilhos são explorados há séculos por escritores, cineastas, políticos, religiosos entre outros tantos, até nossos pais. De todos, os mais inacreditáveis são os autoproclamados coachs. Ia escrever este texto de bate-pronto, meio que no automático, mas tive a “orelha puxada” por minha esposa, ao contar o que pretendia fazer, ela me advertiu que este é um texto que vem sendo pedido por algumas pessoas. Em respeito a elas empreendi uma pesquisa e como gosto muito de saber a etimologia, a origem das palavras, tentei buscar onde tudo começou...
A
versão que parece mais difundida é a de que na Idade Média, coach eram os ...pausa
dramática... cocheiros. Sim, os condutores de carruagens (kocchen
em inglês; ou kutsche em alemão antigo). Condutores.
Passados alguns anos, era
muito comum na Europa que os ex-alunos das universidades, que não conseguiam um
posto formal nas próprias universidades, atuasse como um tutor ou mentor particular de
estudantes. Tipo reforço escolar. Obviamente a academia já era um lugar onde o
pedantismo tinha espaço, daí começaram a chamar pejorativamente [2]
esses tutores de coachs. A "lógica" é que esses professores conduziam os alunos através das provas e exames.
Assim
o termo começou a tomar novos significados com o passar dos anos, como por exemplo
treinadores esportivos que são chamados de coachs. E na sequência surgem os
especialistas em vendas, ou em orientar vendedores, que embarcaram com o
crescimento do marketing: os coachs de vendas.
Sei
que estou passando muito rápido por essa história, mas é apenas para ilustração,
pois a parte mais interessante é quando esses coachs de venda se juntam a uma
ferramenta pseudocientífica [3] chamada
Programação Neuro-Linguistica (PNL) [4].
Isso possibilitou aos coachs se autoproclamarem detentores de um conhecimento
baseado em dados “científicos” e eles ganharam o mundo, não mais se detiveram na área de vendas e empresas. Hoje observamos que essas pessoas estão em todas as
áreas: motivação, saúde, espiritualidade, emagrecimento, sucesso na carreira e
na vida pessoal.
Difícil
saber quem começou, mas sabemos que uma coisa alimentou outra: livros de autoajuda
e coaching. Aqui no Brasil, principalmente a partir da década de 80 os livros
de autoajuda se tornaram best sellers e hoje são considerados em algumas listas
de livros mais vendidos como uma categoria independente (como ficção, novelas,
etc.). Assim surge uma indústria com cursos, palestras, livros, videoaulas,
seminários, workshops e mais o que couber aí. Ah! Sem esquecer da formação de
novos coachs, o que criou uma espécie de indústria “spin of” do
coaching, como dizemos nos filmes e séries como “Han Solo: Uma estória Star
Wars” e "Better Call Saul" (de Breaking Bad). Não pesquisei sobre valores, mas
acho que não erraria por muito se dissesse que que a formação dos novos coachs
e o aperfeiçoamento destes é mais lucrativo que o próprio coaching. Então temos
os coachs e os coachs dos coachs, parece uma orquestra no brejo de tantos coaxares.
Faço
uma pequena inserção sobre um certo desgaste do termo coach e da prática do
coaching, daí começam a surgir os mentores e o mentoring. Para fins deste
texto, usarei os termos como se referindo ao mesmo tipo de pessoa, afinal os objetivos
são os mesmos, mas deixemos a discussão dos objetivos para mais à frente. Já
sei, já sei. “Ele nem sabe a diferença e já quer julgar?”. “Como assim coach e mentor são a mesma coisa?” 🙄
Bom
a questão é que a internet foi, e ainda é, fermento para este bolo. Aí surgem
os influencers, pessoas que tem em suas mídias sociais milhares ou milhões de seguidores e que tem seus hábitos replicados pelos seus followers. Então tudo se mistura,
coaching, mentoring e influencing. De certo que a grande parte dessas pessoas
não tem formação nenhuma, tem formação em área mas que não é correlata ou formação quase nenhuma (e possível virar coach com cursos de
fim de semana) que estão dizendo as pessoas o que elas devem ou não devem
comer, vestir, falar, quantas horas dormir, como tratar as pessoas, com que
pessoas se envolver e tudo mais que você possa imaginar.
Marco,
mas você abandonou o gatilho? Não abandonei. Por que essa proposta, o coaching,
fez e faz tanto sucesso? Pelo uso e abuso de gatilhos. Quem quer ganhar muito
dinheiro? Quem quer ser popular entre as pessoas? Quem quer emagrecer e não
consegue? Quem quer diminuir o estresse? Quem quer trazer o ser amado em até 3 dias? (Ops, acho que este não, mais vai saber). Estas perguntas contêm alguns dos
principais desejos que estão por aí. Dados da realidade ou da imaginação que podem disparar gatilhos como medo de ser
marginalizado pela aparência ou posses, ansiedade por dificuldade de relacionar-se,
estresse por não conseguir dizer não e acumular atribuições, angústia por ver
outros sendo promovidos e você não, ambição por algo ou alguém, depressão por várias causas. Aí você ouve
alguém dizer: Você está ansioso? Estressado? Desanimado? "Eu tenho a solução".
Tudo que você queria ouvir. Essa pessoa te pega como? Usando uma roupa de grife
se o problema é relacionado a dinheiro/sucesso, um corpo magro ou musculoso se
o problema é aparência, fala confiante se o problema é de relacionamento. Ou dizendo que conhece um caminho de DEZ PASSOS (e haja fixação por dez passos), um conhecimento milenar (o Egito antigo é recorrente), ou o que os milionários e bem sucedidos fazem.
A
esta altura você já deve ter percebido minha implicância com o gênero coach. Se não
percebeu ainda, vai perceber. Implicância não é o melhor adjetivo aqui, pois implicância
pode parecer apenas uma questão de simpatia, de gosto ou de opinião. Para além de
gostar ou não, há problemas no horizonte. Se hoje existem dilemas diversos
dentro da psicologia (uma área que ainda caminha para ter uma prática baseada
em evidências sólidas). Se para se tornar um psicólogo o candidato precisa
cursar 4 anos de uma faculdade e preferencialmente cursar mais algum tempo para
especialização em alguma área. Se a psicologia como prática profissional ainda
sofre de estigmas sociais como “ser coisa para maluco”. Como um cursinho de fim
de semana pode fornecer bases para alguém “conduzir” outra pessoa num caminho
de sucesso (e aqui ainda poderíamos discutir o que é sucesso). Mesmo que a
pessoa estude mais tempo, porém mergulhando em conhecimentos pouco confiáveis
como PNL, pode solucionar problemas sérios?
Na
minha avaliação penso em três categorias de pessoas que se intitulam coachs ou
que se propõe a formar coachs. A primeira é daquelas pessoas que de boa-fé são imbuídas
do espírito de ajudar quem precisa. Essa primeira categoria não deixa de ter
seus perigos, visto que boa-fé nem sempre caminha ao lado do senso crítico e da
formação adequada. De boa-fé muitos conselhos foram dados em mesas de bares regadas
de bebidas e tira-gostos. O segundo grupo é daqueles que sabem que não estão
preparados para fazer o que se propõe, mas pensam que “se não foram eles” alguém
irá fazê-lo. Então se é para ganhar algum trocado, melhor que seja ele. Nesse grupo eu
incluo aquelas pessoas que tiveram sucesso em alguma área e se acham entendidos
naquilo: se deu certo para mim o que que custa cobrar de alguém para ensinar o
caminho das pedras. O terceiro grupo é o de pessoas que tem uma forte formação
cultural e/ou acadêmica, exalam um ar de sabedoria e usam dessa imagem para
influenciar pessoas. Neste terceiro grupo pode haver uma intercessão com o
primeiro ou com o segundo, mas normalmente se equiparam mais ao segundo.
Acho muita maldade mexer com a cabeça das pessoas com frases de efeito e supostas “ferramentas” para ganho pessoal. Dinâmicas que mais parecem com brincadeiras de jardim de infância ou catarse coletiva são na melhor das hipóteses entretenimento. O problema é que você não está pagando por entretenimento, como em um teatro, cinema, show ou recreação. Você está pagando para acabar ou atenuar uma “dor” (aqui uso o conceito de dor do marketing). Você está pagando não para se sentir melhor durante poucas horas ou dias, você está pagando para solucionar problemas de sua vida real.
Mas eles estão resolvendo problemas da vida real das pessoas? Eles estão extirpando ou minimizando dores? A resposta é simples, um sonoro não (veja aqui, aqui e aqui). É a maior maldade, na grande maioria dos casos ainda sobrevém a culpa, culpa? Sim, pois se você não alcançou os objetivos a responsabilidade não é do coach, é sua. Foi você que não se dedicou, você não seguiu à risca, você não mentalizou suficiente. As “ferramentas” que o coach te passou funcionam? Eles afirmam que sim, eles mostram com o sucesso deles que sim, então o erro só pode estar em... VOCÊ!
PS - Nem entrei na seara dos coachs quânticos (SIC), para isso deixo o link para o texto de alguém que escreve melhor que eu sobre o assunto.
[1] Money
(Roger Waters) gravada pelo grupo Pink Floyd sendo a primeira faixa do lado B
do álbum Dark Side of The Moon (1973), o famoso disco do prisma.
[2] Por favor não imputem a mim responsabilidade sobre este fato. Não há nada de pejorativo em ser um condutor de carruagens ou similares. É realmente um costume que perdura até hoje o uso de profissões que dependem menos de escolaridade ou que tenham menores remunerações para menosprezar outrem.
[3]
Uso aqui o termo pseudocientífico nas definições de Mario Bunge e Carl Sagan
para quem quiser se aprofundar.
[4] Para entender um pouco sobre PNL recomendo https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2023/01/12/programacao-neurolinguistica-mito-forte-ciencia-fraca para quem gosta de leitura. Se você é mais chegado aos vídeos recomendo https://www.youtube.com/watch?v=ZLsZKxQ5b6w&t=0s
Muito esclarecedor!!! Interessante você levantar a questão da culpa por não conseguir e a resposta à essa frustração.
ResponderExcluirO mundo anda tão acelerado que nem prestamos atenção a essas coisas. Sedentos de ajuda para poder transitar nesse mundo de tantas e rápidas mudanças, parecemos o coelho da Alice: "É preciso correr muito para ficar no mesmo lugar. Se você quer chegar a outro lugar, corra duas vezes mais rápido". Aí depositamos nossas esperanças em alguém que pode simplesmente nos dizer ao final que a culpa é nossa.
ExcluirMuito bom.
ResponderExcluirExcelente tema para reflexão. Te agradeço por lançar luz na escuridão sócio-emocional na qual vivemos. Bando de reses seguindo guias tão ou mais cegos do que nós mesmos. Saudades do tempo em que um título era conferido a alguém por notório saber ou notória relevância, hoje são dados aos “pops”. A coisa só piora se invocarmos a máxima, proferida sabiamente por Nelson Rodrigues, que afirma que “a unanimidade é burra”. Mas parece preferível a esta sociedade pós moderna, pós tradicional e pós intelectual, seguir o fluxo. Ir! Porque não? Se todos estão indo… Neste sombrio cenário se manifestam os coaches, mestres sem luz, servos da ignorância, louvados por desesperados e vazios seres humanos… por enquanto humanos… quem sabe até quando essa definição poderá ser aplicada a esta decadente raça? Ah, o gatilho é sempre o mesmo - satisfazer o ego. Manifestado em multiformes possibilidades, porém sempre baseada na busca de se tornar o centro do seu próprio mundo. Maldito humanismo!
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