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SONZA, EICHMANN E ARENDT

(publicada inicialmente no Jornal Estado de São Paulo no dia 03/10/23)


Recentemente a cantora Luísa Sonza postou uma foto com o livro
 Eichmann em Jerusalém, da pensadora Hanna Arendt. Quase imediatamente houve um furor nas redes sociais. Vínculos entre uma recente fala racista da cantora e alguns textos de Arendt supostamente favoráveis à segregação racial nos Estados Unidos foram jogados aos holofotes. Daí ressuscitaram um texto em que a filósofa, ou cientista política, como parecia preferir, foi chamada de supremacista branca. Também resgataram o perdão que ela havia dado ao filósofo Heidegger (seu amante e nazista de carteirinha) para desqualificar todo o pensamento dela. Os fãs de Arendt correram ao seu socorro, a meu ver, sem sucesso. Alegaram que Hanna, sendo judia e repudiando o nazismo, jamais poderia ser racista, que após defender a segregação havia escrito cartas se justificando e se desculpando pela falta da compreensão correta do movimento pelos direitos civis estadunidenses. Afora o que foi mencionado muito en passant, a questão é muito mais complexa e merece uma análise aprofundada. Muitas questões importantes surgem daí e parece que poucas pessoas assim percebem. 

Primeiro, onde estão os argumentos do debate? Se a postagem fosse das cantoras Iza ou Ludmilla, qual seria a repercussão? E se fosse Tiago Iorc? E se fosse Emicida ou um dos netos de Gil? O que muda na discussão? Ou não haveria discussão? Outro ponto é que desde que a filosofia nasceu temos diversos exemplos de pensadores com manchas em sua biografia. Já citei Heidegger (filiado ao nazismo), mas há também Platão (que tinha críticas à democracia), Nietzsche (muitas vezes misógino), Karl Marx (aparentemente homofóbico), David Hume (racista) e uma lista infindáveis de nomes e adjetivos pouco elogiosos aderindo a seus nomes e obras. Nessa linha, deveríamos descartar toda a obra desses pensadores? 

O debate sobre a filosofia me parece pobre e empobrecido, seja pela fulanização, seja pelos argumentos de autoridade ou qualquer outra falácia que se impõe perante o que é o ato de filosofar. Ao menos alguém parou para falar de um livro, pena que a grande maioria nem leu.

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