A – O Motorista de taxi
Fazia
um calor argelino e as fagulhas do sol refletidas nas janelas e capôs dos
carros feriam os olhos de uma maneira que me fez lembrar Mearsault. O trajeto
até era curto, já tinha feito algumas vezes a pé, mas naquele dia eu chamei um
taxi. Na rápida conversa sobre as dificuldades do taxista frente a uberização
do transporte urbano, veio à tona o assunto de que o Brasil precisava de alguém
que fosse “contra tudo isso aí”. Um argumento era que os funcionários públicos
eram marajás e recebiam fartos salários as custas dos pobres contribuintes. “Outro
dia peguei (SIC) um professor do IFF[1] que disse que ganhava 10
mil reais” – disse ele. Tentei ser o mais socrático que pude na minha fala e
perguntei:
-
É o professor do IFF que ganha muito ou as professoras do município e os taxistas
é que ganham pouco?
Segundos
de silêncio e reflexão. “É talvez o senhor esteja certo, mas tem muita coisa
errada por aí”.
Fim
da conversa, será que naquele momento começava o amadurecimento de um bom licorzinho de jabuticaba?
Estávamos chegando ao destino e eu tinha que fazer como Betsy após a corrida
com Travis Bickle e perguntar qual a forma de pagamento pela corrida.
B
– "A ambição é como oceano. À medida que mais água é consumida, maior é a
sede."[2]
– “Precisamos pensar menos em ambição, reduzir
nossa carga de trabalho e pensar mais na saúde”.
Eu havia sido convidado para integrar uma mesa sobre cuidados com os hábitos de vida para manutenção da saúde física e mental de professores. Não era uma mesa de debates, eram apenas exposições sobre o tema para ajudar a conscientizar professores e estudantes de pedagogia sobre a importância de bons hábitos para saúde. Bate papo tranquilo, daqueles que todo mundo concorda com todo mundo.
- Professor é centro de uma sociedade melhor
- Professores precisam ser mais valorizados
Um pouco de exercício físico aqui, uma reeducação alimentar ali, horas de sono...
Até que... É, teve o "até que". Em determinado momento, naturalmente, sorrateiramente, meio que aquele tipo que sutilmente entra numa roda de conversa e sem pedir licença surge, surge a questão da carga horária e do número de turnos de trabalho. Daí o "até que" foi a fala mencionada no início proferida por uma outra convidada[3] a palestrar também. Hoje meio que a gente chama de "positividade tóxica", sabe, mas na época era só uma frase coach "inofensiva".
Eu sei “Ah, todo chato cutuca/pra você prestar atenção/(...)eu sou um chato e meu Deus não me aguento/só me tacando no mar”[4]. Eu podia ficar calado, mas para isso, só me tacando no mar. Após
esta afirmação, eu logo pedia a palavra, e aí
indaguei:
-
Será que elas trabalham tanto por ambição ou tem um salário que não é suficiente e
precisam trabalhar mais para manter o mínimo de dignidade?[5]

Bem, o arbitro fez o sinal de que não foi falta e mandou seguir o jogo, ninguém pediu o VAR, segue para outro assunto.
- "Ah! A meditação vem sendo cada vez mais..."
C
– “Não houve ditadura no Brasil”
Estava
olhando o feed de uma das redes sociais e repetidamente aparecia a fala de um
pastor/deputado ou deputado/pastor, não sei ao certo. Ele afirmava que no
Brasil não teria havido uma ditadura pois mataram menos de 400 pessoas (SIC)[6]. Até que vi este vídeo
repostado por um ex-aluno. Fiz o seguinte comentário:
–
Eu estou te enviando a AI-5, publicado no site oficial do governo, não é uma
interpretação do texto, não é um comentarista do texto, é “O” texto.[7]
Quase prontamente recebia resposta dele: “Realmente havia muito poder concentrado na mão de poucos”. Até onde pude saber, ele não mudou sua opção eleitoral, mas agora era um integrante daquela corrente ideológica que admitia ter havido uma ditadura, que a história pode até ser reescrita, mas que as evidências estão lá. Isso não mudou o voto dele, muito menos o resultado da eleição e o governo desastroso que a seguiu. Mas uma semente de reflexão foi plantada, continuo torcendo que a dita cuja tenha conseguido germinar.
D - Uma breve conclusão
Se você chegou até aqui, pode ter lido três estorinhas curiosas (talvez até engraçadas, ou não) que parecem não ter relação nenhuma. Talvez a única relação que tenha visto seja que em todas tem um chato (que no caso é sempre o mesmo). Mas eu acredito muito, de verdade, que se você chegou até aqui tenha percebido que em todos os casos uma simples pergunta (chata, incômoda) pode nos levar a reflexões muito amplas. Cada uma destas perguntas poderia ser tema de três diferentes debates (no mínimo). Por que no mínimo? Porque se você quiser debater a uberização, a dignidade ou o que é ditadura, que foram os pontos que iniciaram as perguntas, nós já temos mais 3 debates.
Fecho aqui com os Racionais MC's
"A base arrebentando
Em cima vou rimando
Lado a lado com os manos,
Vô me expressando,
Relargando tudo aquilo que você conhece
Respire fundo prepare-se
Bem vindo ao teste
Resistência, equilíbrio ser firme e forte
é preciso venha comigo irmãos
é necessário prestar atenção "
[1] Instituto Federal Fluminense https://portal1.iff.edu.br/
[2]
Autor desconhecido.
[3] Gostaria
de ressaltar que a fala dela não tinha a menor intensão de ser agressiva ou
menosprezível, era apenas uma ignorância sobre o assunto. Da mesma maneira eu
não entendo nada do trabalho dela e poderia ser eu a ser advertido.
[4] Excerto
da letra da música O Chato de Oswaldo Montenegro, composta e cantada pelo próprio
(Ao Vivo, 1997)
[5]
Nessa época, no município em questão o salário de professor do ciclo
fundamental 1 (1° ao 5° ano) era de aproximadamente 1,2 mil reais. De um
Magistrado mais de 30 mil reais. Apenas como referencial de época.
[6]
Fonte: https://youtu.be/_TnQuMRAgkU
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm
Opa, Marco, topo entrar no barco da uberização!
ResponderExcluirLaercio, parece caminho sem volta, mas tem gente brigando contra.
ResponderExcluirParabéns Marco, pela iniciativa, liberdade e empoderamento nas suas narrativas. De início achei os três textos sem relação, mas depois percebi que o incômodo com fatos reais, diretamente relacionados às nossas vidas ou não, interferem na nossa saúde mental e achei esse o ponto de conexão entre os contos. Considero essa problemática um tema importante para discussão e constante reflexão.
ResponderExcluirGrande abraço!
Obrigado Patrícia. Você acertou mesmo. A ideia foi partir de 3 situações diferentes que convergem para pontos que sem reflexão crítica passam despercebidos.
ExcluirExcelentes reflexões.
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