Modernidade Líquida, como dizia o sociólogo Zygmund Buman. As coisas são tão fluidas a partir do que ficou convencionado chamar de pós-modernidade, que o individualismo chegou a um ponto bem fora da curva. Aí o sujeito fica sozinho na multidão e não pode parar, precisa ficar se movendo o tempo todo. Muda de emprego, muda de relação, muda a profissão, muda de cidade, e vai mudando. Afinal, pedra que muito se muda não cria limo jamais[1]. Este limo que a pedra vai juntando em um ponto sólido da paisagem húmida de um bosque, por exemplo, se torna parte integrante desta mesma pedra. Se você retirar o limo e devolver a pedra ao mesmo lugar, pode ter certeza que algo no ecossistema terá que ser readaptado.
Tempo para pensar? De jeito nenhum, o líquido é fluido, suas moléculas tem que estar em movimento constante e modificam seu formato de acordo com as fronteiras que aparecem a sua frente. Hora do exemplo dramático, um rio flui através de espaços propícios em um determinado solo, até que encontra uma diferença abrupta de altura entre duas partes deste solo, não tem outra saída a não ser cair e formar uma cascata. Desta forma, muitas vezes, o solitário perdido precisa de um modelo, uma estrutura a ser seguida. De preferência com uma fórmula de sucesso. Pronto, cria-se o marcado de autoajuda.
Modelo a ser seguido, fórmula de sucesso, felicidade, fortuna. “Não posso perder tempo”, melhor pegar um constructo pronto e seguir em frente. Não deu certo? Duas opções? Pega o livro seguinte do mesmo autor ou outro o livro de outro autor e muda a fórmula. Afinal na sociedade liquida, trocar uma mercadoria por outra faz parte do script. Neste ponto, confesso envergonhado que já estou farto de tentar explicar o que é autoajuda. E o meu desdém pelo modelo só vai ficar cada vez mais claro.
Mas o que a filosofia tem a ver com isso? Aí mora o perigo. Temos 3 modelos aqui, no meu humilde entendimento. Em um primeiro modelo, mais clássico, o autor denomina suas máximas de “para-choque de caminhão”[2] de filosofia de vida. Nada mais a dizer, ele chama de filosofia aquilo que fez e deu certo para a vida dele, ou chama de filosofia aquilo que mesmo não dando certo para ele, a convicção que dará certo para você o impele a escrever. Ah! Não posso deixar de dizer que muitas coisas são exatamente o que você gostaria de ouvir/ler. Outra coisa bem comum na modernidade liquida e aprofundado na Sociedade do Cansaço (Byung-Chul Han, 2018) é que se não funcionou, você não se dedicou o suficiente, afinal cada um é responsável pelo seu próprio destino[3]. Bom espero que nessa altura você já tenha entendido que não tem nada a ver com a filosofia.
Contudo, faz parte da filosofia, numa disciplina chamada ética, a proposta ou identificação de condutas. Cada corrente filosófica busca apresentar algumas propostas de como o indivíduo deve se portar em sociedade, família e comunidade. Desde o início muitos filósofos utilizaram bastante de seu tempo e cérebro criando sistemas coerentes de filosofia nos quais cabiam uma ética própria. Mais uma vez espreitamos o abismo (e como nos avisou Nietzsche, quando a gente olha o abismo o abismo olha de volta para a gente). Mas entendeu, a expressão chave aqui é sistema coerente, ou seja, a ética é própria para aquele sistema, se encaixa nele, sem lacunas ou arestas. Dificilmente um pequeno excerto daquele edifício de conhecimento, retirado dali, por mais fascinante que pareça necessariamente vai funcionar isoladamente. Aí o autor mistura estoicos com existencialistas, Marco Aurélio com Schopenhauer, pitadas de Epicteto com toques de Thomas de Aquino, e qualquer coisa mais que faça ele parecer muito sábio e erudito.
"I have a bad feeling about this"[4]. Sim, o terceiro tipo é o pior, mais uma vez na minha rasa opinião. Nessa “categoria” figuras com respaldo acadêmico, muitíssimo cultos é verdade, usam desta credencial para criar simulacros de conhecimento. E por causa disso parecem estar fora da alcunha da autoajuda. Vamos dividir aqui em algumas partes que me parecem importantes.
O que eu entendo por simulacro de conhecimento? A definição de simulacro é representação, imitação, falso aspecto ou aparência enganosa. Então, essas figuras usam uma aparência enganosa de conhecimento, por exemplo citando Shakespeare ou Sartre, Schopenhauer ou Agostinho de Hipona em historietas do nosso cotidiano de uma forma lógica e atraente. Mas você pode me perguntar, qual a diferença entre estes e os outros? Esses, os terceiros têm o carimbo da academia, da erudição.
É bem verdade que a filosofia como busca da verdade, compreensão do tempo histórico entre outras coisas pode ajudar em muito as pessoas a buscar a liberdade, a felicidade ou o que quer que elas queiram, mas precisamos mais de filósofos e menos de influencers.
[1] Verso
da música “Pedra que não cria limo” (Nilton Alecrim e Veve Calasans) interpretada por Alcione no álbum “Pra que chorar” (1977), faz referência a um ditado
popular de autor desconhecido.
[2] Para
as pessoas de gerações mais novas, em um passado não muito distante era comum
nas estradas encontrarmos máximas, dizeres, e frases pretensamente profundas e
com sabedoria pintadas em para-choques de caminhão. Isso eram as “filosofias de
para-choque de caminhão” Hoje é mais comum encontrarmos salmos ou agradecimentos,
pedidos a Deus.
[3]
Licença poética, os autores não falam exatamente assim.
[4] Obi-Wan
Kenobi - Star Wars: Episode I - The Phantom Menace (1999)
Belo texto, Marco. Mais um capitulo do livro.
ResponderExcluirObrigado Laercio. Mas estamos falando de qual livro mesmo? 🤣🤣🤣
ResponderExcluirNão sei se já lhe disse, mas adoro seus textos!!! Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado Cristine! É muito bom saber que estão gostando.
ResponderExcluirBelo texto amigo
ResponderExcluirBelo texto amigo, parabéns pelo blog
ResponderExcluirMuito bom ler seus textos professor
ResponderExcluirMuito obrigado.
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