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Sobre galinhas e EaD

Quando criança adorava ler quadrinhos. Era para mim uma coisa fantástica que me acompanha até hoje. Sou fã de muitos HQs, ou gibis como era mais comumente chamados na época, e se não leio com tanta frequência é por causa daquelas coisas que acontecem por virarmos adultos bobos e sem imaginação.
Quase sempre nas edições dos quadrinhos mais tradicionais desta época (Disney, Turma da Mônica etc) encontrávamos nas páginas centrais o anúncio da figura abaixo.


Nessa época chamávamos de cursos por correspondência, como o nome já diz, você preenchia a ficha de inscrição e enviava por carta com um cheque (Ixi, o povo da geração alfa já desistiu aqui) e recebia pelo mesmo modo manuais com aulas sobre o assunto escolhido. Após fazer uma prova recebia, também via correios, um diploma ou certificado. Demais, não é?

Bem, a tecnologia evoluiu muito. Cartas e cheques são coisas praticamente extintas como os dinossauros. Mas... (e lá vem a conjunção adversativa, fala serio Marco, trauma de infância?) não sei se vocês estão por dentro, mas os dinossauros não foram extintos. Bem, aqueles que foram, se foram, mas deixaram descendentes.


Taí a prova que os dinossauros ainda estão por aqui.

Muita gente consertou radinhos de pilha, liquidificadores e até aprendeu Inglês baseado nos cursos por correspondência. Você pode perguntar, mas por que você está falando dessas velharias? Saudosismo? Não. Estou contando isso para os incautos que não sabem que Ensino a Distância (EaD) não tem nada de novo ou muito revolucionário. Os cursos "por correspondência" não estão extintos, apenas evoluíram, assim como os dinossauros viraram galinhas.

Marco, me explica se isso é uma metáfora ou alegoria? Não, não vou explicar. Mas se algumas das maiores criaturas existentes (cara, por que todo mundo acha que dinossauro tem que ser grande?) foram transformados em simplórias criaturas cacarejantes, os cursos por correspondência tomaram um rumo diverso. Vamos a exemplos.

Geralmente os cursos por correspondência, ou EaD dos velhos, eram cursos de caráter técnico ou de aprendizado rápido. Hoje o EaD dos smartphones e computadores vão de aprender uma receita até receber um título de Bacharel (fora do Brasil até títulos stricto senso, mestrados e doutorados). Mas que legal, não é?

Sim... e não. Como em qualquer atividade humana temos os EaDs e os EaDs. Com toda tecnologia e avanços da pedagogia alguns cursos são dinossauros com aparência de galinhas. Marco, ajuda aí! Confundindo tudo. Como assim, as galinhas são dinossauros ou EaDs? (rindo demais com a tortura intelectual de quem se atreveu a ler). Vamos então destrinchar o frango assado 😕(mas que piada sem graça). Muitos cursos EaD de qualquer nível, independente de toda tecnologia e evolução, não passam de cursos "por correspondência" com cara hightech, como se o T-Rex aparecesse para você e você só visse uma galinha. Muitos desses cursos não tem quase nada de diferente do que era oferecido a 50 anos atrás, só que em vez dos manuais estarem em papel impresso, estão em telas. Daí vem a lógica do menor esforço, já está tudo alí, só transfere do papel para a tela. No lugar de enviar pelo correio, envia pela internet. O diploma? Este pode ser até digital em PDF, mas seguiu exatamente a mesma lógica. São dinossauros, mas em corpos de galinhas.

Eu fico pasmo de ver quanta gente defende esse tipo de EaD hoje. Usam discursos de popularização, de inovação, de democratização, mas revelam para mim apenas uma enorme preguiça. E o pobre coitado que pensa estar comprando galinha, está comprando um branquiossauro. Nem dá para assar o bicho para comer com farofa.

Como disse, tem EaDs e EaDs. Não podemos colocar todos os ovos num mesmo cesto, é não é pelo motivo que normalmente esta metáfora é usada, simplesmente há cursos EaD fantásticos, aqueles que a tecnologia e a pedagogia se juntaram para criar algo novo que não é apenas evolução, é uma transformação da lógica do ensino-aprendizagem. Aquelas coisas que colocam o aluno no centro do processo, sabe? Cursos em que a tecnologia é usada como mídia e não como finis coronat opus. A tecnologia que redireciona todos os papeis e personagens, tornando os professores em alunos também, auxiliando a conexão entre os participantes do processo, o aluno como agente ativo de seu próprio desenvolvimento, sem ser largado a ser responsabilizado sozinho quando não adquire as competências que buscou.

Como diz um amigo meu, não adianta brigar contra o EaD, ele já está aí, e já está há muito tempo, mais tempo que muita gente imaginava. Mas dá para brigar muito por um EaD de qualidade. Que as galinhas vivam em paz e os dinossauros descansem em paz, mas não vamos deixar o EaD em paz, por favor!

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